5.10.04

sempre foi desapegada de tudo. não tinha muitas roupas, nem sapatos. nem discos, nem livros. nem nada que decorasse a casa ou demonstrasse que quem morava nela possuía bom gosto ou não. ou até mesmo se possuía algum gosto. e agora, depois de anos, finalmente se mudava. tinha herdado a casa que havia sido dos pais e antes de ser de seus pais havia sido de seus avós. nasceu naquele primeiro andar azul de esquina, número 84.

os amigos sempre estranharam o vazio da casa. mas após a perda dos pais, ela havia dado tudo, ou quase tudo que lá havia. nunca falava sobre isso. evitava até as últimas. ignorava ou se ria, num nervosismo irritante. e agora, depois de anos, finalmente se mudava da 84.

pronta pra ir embora, olhou para a caixa em cima da cama: a única. toda sua mudança ali. caixa de sabão em pó que ainda tinha cheiro de mais branco. sua vida inteira dentro de uma caixa. tudo que fosse sua vida ali. até seus olhos vidrados na caixa estavam dentro dela. e fazia parte do mistério achar que realmente se olhava pra ela.

e olhava olhava olhava: papelão e tanta fita crepe. três letrinhas pra se ter como se chamar o sabão, muitas palavras pra dizer que em algum lugar de são paulo se fabricava aquilo. e pegando a caixa entre as mãos, percebeu que era o suficiente para se sentir que carregava algo valioso. e tinha perfume de roupa limpa e algo a fez lembrar do sol.

então parou. deu passos para trás - não sei quantos, mas, certamente, em número par, era supersticiosa e detestava os ímpares - e assim tornou a colocar a caixa em cima da cama. sentou-se no chão e não queria naquele momento nunca mais fazer nada a não ser ficar parada, talvez virar móvel ou objeto permanente da exposição e vida do primeiro andar 84, e se perguntava com uma dor comendo-lhe as tripas quanto realmente deve pesar algo, para saber que é importante.