8.10.10

[de 2003].

às vezes me aperta tudo,
meu corpo, minh'alma, meu mundo,
e pareço sentir a dor do mundo inteiro.

e hoje foi só porque olhei as luzes à noite,
daqui de cima,
de tão alto,
de varanda tão aberta,
daqui do prédio dele.

e tão alta que estou, parece que a piedade e o amor me chegam num desafio de aqui chegar -
e começo a achar que deus só é deus, se ele existe, porque está nas alturas,
e deus então vê e entende que o amor e o ódio humano é só tentativa de continuar.

e vejo luzes maiores,
e vejo luzes mais claras,
outras tão amarelas,
outras que não vejo, que não consigo,
porque me são invisíveis como sou a mim.

e a luz do farol,
e as luzes empilhadas dos prédios,
e o rastro dos faróis dos carros,
e todas as luzes me contam: ser é mover-se.

sim, as luzes não param.
nelas, nada há de estático.
e meu deus, é tão óbvio e bom dentro do meu astigmatismo precário,

eu vejo as luzes,
e elas caminham até meus olhos, até mim,
me trazendo notícia de gente que liga o interruptor em casa
ou a hora da vida e da banal surpresa dos postes que acendem na rua.

daqui de cima tudo é tão longe,
tão perto,
tão maior e tão menor.

sim, eu posso ver as luzes desenhando a cidade,
as luzes que gritam indicando lugares,
seus conglomerados que sonham ser via-láctea,
eu posso ser um deus de brevidade,
alto e poderoso no olhar generoso que tudo abrange.

eu posso ver as luzes na dor de todas as gentes.

1.10.10

alimento essa coisa implacável que dorme arranhando por dentro de mim.
como alguém vivo enterrado a sete palmos,
cravando as unhas na madeira,
tentando, em vão, sair

- e sei que a cada unhada morro mais um pouco.

alimento o bicho com meus vazios.
aqui dentro há despovoados. ermos. abandonos.
e como são todos ocos, não há como deles se fartar.
por isso está sempre faminto.

parasita que me afina as paredes,
retirando mucosa, órgãos, pele,
comendo com raiva e fome cada um,
a espetar-lhes sempre as unhas.

vinga-se, deixando-me, lentamente, como corpo acústico de ocos e ecos,
catedral imensa sem móveis, nem devotos.

come também minhas preces,
e a pouca fé que reveste meu espírito,
come com seu jeito de quem nunca descansou,
de que nunca lhe alimentaram de verdade,
de que o enterraram vivo para que se calasse para sempre.
testemunha e vítima.

24.9.10

ela aprendeu, agora aprendeu, que as coisas não podem ser maiores ou menores do aquilo que são.

custou a entender, mas entendeu, que a escala em que enxergamos o mundo determina o tamanho do que somos perante as coisas. e descobriu, assim, que é na irredutibilidade da dimensão, da geometria traçada correndo montada na luz que cria os olhos, que reside a dor.

e de forma besta, quase safada de tão besta, se disse em voz alta, sozinha, frente à janela do quarto: "um lápis é um lápis, e um guindaste é um guindaste. e sei que não posso alargar nem reduzir além do que cada coisa é. porque um lápis quebrado não é mais o mesmo lápis e um pedaço de guindaste é apenas ferro velho... e se o meu pai não possui toda ira que possui, não é o homem que aprendi a amar como pai".

constatou, por fim, constatou, que é a presença certa da dor que dá sentido a tudo que nos cerca. porque há um parto para fazer existir cada signo que elegemos para explicar a nós mesmos sobre o mundo.

então voltou para casa e abraçou o pai, e no abraço lhe entregou todo seu amor e toda sua mágoa, do tamanho exato, milimetricamente exato, daquilo que são.




15.4.10

foi quando, então, compreendeu: as pessoas se preocupam muito com as outras, mas, na verdade, não se importam nem um pouco.