2.6.05

tenho poucas certezas. e nunca fiz questão de tê-las. sei e reconheço, tenebrosamente, dentro desse baú velho que é minha memória, de que algumas a mais me seriam de grande utilidade. poupariam dores desnecessárias. me contemplariam com noites mais longas e de sono de perdição. não as noites às quais estou acostumada. dormindo e acordando a cada egoísta fatia de bolo de relógio. o sono profundo de quem tem uma vida além vigília e consciência, de quem não tem porque jogar a âncora ao pé da cama antes de afundar o corpo no colchão penitente.

sei das certezas que tenho, das espécimes raras que descobri, que o maior pássaro de todas elas atende pela oração: "a vida comeu minha pressa". certeza de farta plumagem e penas longas em escala de cinza. canto firme, começando por um assovio curto seguido por uma doce pausa que despe-se em outro assovio, porém quase inaudível, lento, longo. lento, longo, longo.

e os poros dos dias dilatam em sede, bebendo devagar a música tranquila e sombria de minha certeza maior. a vida comeu minha pressa, sim, e em dentadas largas e sem anestesia. com os dentes decididos a mascar sem dó a cabeça de toda a ânsia, sem se desvencilhar de suas plumas e penas agoniadas e pedintes de tudo que há pra agora, pra ontem, pra hoje, pra já, para o momento em que nem sequer se era pressa. se era ânsia. se era querer.

e quando a pressa se foi eu não chorei. não me vesti de noite, nem decretei luto. não hasteei a bandeira a meio mastro, nem amarrei o laço de crepe negro na lança. ao contrário, houve um discreto porém sincero carnaval nas ruas abertas por caminhos de suor, as ruas derramadas na cidade do meu corpo cansado, escorrendo confetes nos estados de minhas costas até o extremo sul de meus pés. então um alívio frio beijou meu cansaço e avisou que ele poderia partir. foi e não me deixou bilhete. ainda bem. nessas horas, bem sei como as palavras podem confundir ou criar testamentos de dor.

então, depois de tudo: o tango com o assassino. vida que pede artigo definido e adjetivo masculino, só para poder me convidar para a dança, rimando seus detalhes, vestida em seu terno de destino. no seu terno de fato, de alvo linho. e olhando nos meus olhos, porque se assim não fosse, não seria vida, tenta não sorrir, a esconder a boca suja. ainda estão lá os fios das penas da pressa presos aos dentes, ainda vivos, arraigados à mucosa, lutando contra o céu da boca, serpenteando pelas gengivas, lutando firme e agoniando a língua. e no meio da dança, canta e um beijo pede. assim, ficamos, eu e ela, a girar no salão vermelho das coisas que desejo, iluminadas pelos lustres do cristal de ímpeto. os seus lábios molhados colados aos meus, entregando-me a saliva emplumada, e eu, na febre dos meus sins, a me deixar ser tomada, mais uma vez, invadida, cidade sitiada, pela pressa que mergulha num gole forçado a minha garganta que não grita e secretamente a anseia.