28.4.05

veja, isso é uma tentativa.

eu tento, pensando lento pra mastigar o doce que vem quando eu lembro.

então tento.

tento falar da forma mais tranquila. da forma mais quieta. de uma forma quase sem forma. porque é leve. porque se pensa que tudo poderia ser e não o é e não é ruim. não, não, senhor. não é ruim. e tudo poderia ter o peso e o movimento e o aval das leis físicas que regem os corpos, mas não tem. e entenda - e eu sei que tu entende - que não depende disso e que está em cada coisa que se faça. e não tem pés, braços, nem força da gravidade. é fantasma e flutuação. não que não me dê aperreios e vontades de andar na rua e te encontrar com cara fechada e de abuso, sozinho e
chateado com algo do mundo, ou feliz com as coisas mínimas que te vi fazerem sorrir, e aí, na rua mesmo, te dar o abraço que guardei, desde aquele dia, tu sabe qual. tudo começava com esse abraço e aí a gente convenceu a ele de que era hora de dormir, ainda que ele perguntasse "mas como o quê, mal acabei de despertar?" e nosso abraço realmente mal tinha aberto os olhos. mal sabia que existia. mas não, não levanta. não abraça. dorme, dorme. por favor, não quebra a mágica.

porque só estar perto é bom. e não precisa estar perto para que eu veja. perto para que eu sinta. já é perto quando é por dentro de meu olho. quase colado ao avesso de minha pálpebra, no escuro que mora no interior de tudo. então eu fecho os olhos e está lá: tu.

tu.

e é bom. é tranquilo. e às vezes me parece que nunca escreverei tão tranquilo assim. mas devo escrever sim, num outro dia, quem sabe. porque é tranquilo ao ponto de em nada ser extremo. é tranquilidade como a alegria do pouco. alegria de pés que se encontram no escuro, agindo discretos e temerosos de serem notados, mas já é o suficiente: porque ali estou eu, inteira, acredite, na ponta de meus dedos, te encontrando, secretamente, pelo esconderijo das pontas dos dedos de teus pés. o corpo fingindo, quase como se não fosse com ele. e então dá vontade de caminhar. chamar teus pés para andar com os meus. correr estradas ou pisar a areia molhada. vontade de te chamar pra vir comigo, e ver até onde a gente pode ir. correr até ter cãimbras e cair no chão. e então a gente pára no fim do mundo e olha para as coisas que ainda vão passar, as coisas enfileiradas, e escondidas no horizonte, esperando o seu dia de ser. e em troca de tanto andar eu te daria meu par de pés pra acompanhar os teus, e a gente acordaria aquele abraço que agora já dorme em nossas bocas.

26.4.05

guardo todos os meus medos numa caixa de osso. dentro de minha omoplata direita, caixinha redonda que dorme quieta. guardei ali para poder cochichar com ela quando bem entender. é só encostar a boca ansiosa no ombro nu e tudo ela ouve. e guarda. como um gravador bem escondido.

e tudo ela sabe, e tudo escuta. e só a ela conto de mim. porque nada há de mais impuro do que as coisas que conto. nada mais secreto e absurdo. todos os meus medos ali, filhotes da cachorra gorda e branca que é o medo de mim.

e fico muda frente ao mundo, porque aqui dentro tudo é polifonia. é barulho de carro na rua, no
meio do sono, com a ambulância que corta o ouvido; é grito e choro de gente que corre e
desespera; é o som das coisas quando acordam assustadas. são as falas de cada uma de mim, esta e aquela lá, eu mesma e a de ontem, a do outono perdido e a do março desbotado - e todas habitam apertadas o meu ombro pesado.

por isso, as costas doem. por isso, pendo para o lado. e durmo mal. e fico emburrada. e as solas
de meus sapatos do pé direito são mais comidas do que às do esquerdo. e eu sei que você olha e
não entende. e mesmo vendo meu ombro, nunca imaginaria. e eu pensaria duas vezes antes de lhe deixar beijá-lo. livrai-me deus, que ele confunda minha boca com a tua.
quando eu era pequena, ainda com tantos cachos, ainda tão loura, eu gostava de ver minha mãe passando batom em frente ao espelho de seu quarto. o batom deslizando e dando cor aos lábios de minha mãe, a boca aberta para o colorido chegar na textura de creme e brilho que encanta às pequenas meninas.

mas eu nunca olhava diretamente para o rosto dela, ou para a boca à espera. eu tinha que olhar para o espelho, de forma que eu não interferisse no processo de beleza por qual mamãe passava todos os dias. olhar para a boca, ficar cara-a-cara com ela, modificaria todo o ritual. mamãe olharia para mim, diria algo bom, me ofereceria o batom, e seus olhos fitariam os meus.

não era isso que eu queria. eu queria ver mamãe passando batom sem se preocupar com meu olhar. que olhasse fixamente para ela mesma e sua boca e se achasse linda, que ela não se distraísse com minha presença enquanto eu a observava. mamãe até poderia ficar menos bonita se seus olhos se desviassem de seu rosto iluminado à lá Payot para olhar para mim: uma menina que nem sequer penteava os cabelos.

então, eu acompanhava tudo pelo espelho. só o reflexo, só a imagem daquele momento em que, como num quadro, eu fazia parte como observadora atenta e discreta, sem interferir na mágica. talvez depois, com os lábios já pintados, mamãe exclamasse um: "ah, meu amor, você estava aí esse tempo todo?".

eu queria isso, mamãe - ser muito mais do que sou, ou possa ser. eu queria ser uma observadora atenta e discreta na vida. mas cresci, e pareço não caber nos momentos. é como se, ao invés daquele pontinho pequeno e com cabelos da cor de milho, tivesse um monstrengo gigante atrás de você no espelho, destoando atrás de tudo nessa vida. e por causa disso, meu desejo de ser vapor. desejo de estar lá, invisível, mas estar. ou talvez, ser apenas o relógio de parede, também refletido, mas nunca lembrado na imagem. blasé. blasé.

sendo assim, eu queria apenas ser. até a vida me chamar e falar: "vem, simone, está na hora de você pintar a sua boca".

14.4.05

minha constituição óssea já me entrega: há cálcio e sentir em todo o tecido de meu esqueleto. é isso que me sustenta e assusta.
quando lembro de mim,
lembro de meus pés grandes pisando o chão
e de como são magros os meus dedos

de como os caminhos se abrem e vão
a se desenrolar como novelos

quando lembro de mim
eu penso em saudade
e no meu colo vazio que grita

e em alguma verdade infinita que abarque
o porquê de toda minha vida

e calo e choro e sonho,
levantando um templo sem fim,
pois quando lembro de mim
não há nada mais tristonho,
bisonho, medonho,
parece que estive sempre só,
enfim.
pontinha de dor
salgada
lantelouja líquida

sua prata me cala
sua dor me irrita.

5.4.05

hoje acordei com o olho mais verde:
a alegria colore a íris.